quarta-feira, 19 de março de 2014

QUE LITURGIA É ESTA???

Do grego λειτουργία, LITURGIA quer dizer “serviço” ou “trabalho público”. O culto comunitário cristão, no formato bíblico, preconiza algumas diretrizes, tais quais: deve ser exclusivamente a Deus - Êx 20.33-6; deve expressar o melhor para Deus - Sl 33.1-3; deve ser racional, ou seja, a entrega do corpo casto e puro em sacrifício vivo a Deus - Rm 12.1,2; deve ser um momento para livre expressão, manifestação de dons e mutualidade - Ef 5.18-21; os dons espirituais não são pretextos para falta de ordem e confusão - 1Co 14.26,39,40; e deve expressar diversidade e unidade - Cl 3.16,17.
Na vivência da igreja, no entanto, a despeito de perseguirmos em maior ou menor intensidade essas características, experimentamos o que nos parece um tanto distante do que a Bíblia instrui. Temos hora e local predeterminado para as reuniões. Temos hora do louvor, hora da mensagem (com tempo prévio de duração), hora do ofertório. Temos também hora da oração, momento dos avisos e participações especiais. Em geral apenas um fala para numerosos ouvintes passivos e silenciosos. O pregador não deve ser interrompido. Por fim, temos a hora do encerramento, com despedida solene, até o próximo encontro que repetirá a mesma sequência.
As liturgias diferem sensivelmente de uma denominação para outra, de uma comunidade para outra, com nuances até da cultura local. No entanto, o núcleo desse modelo é retratado em todos os cultos reformados.
As perguntas que surgem são: De fato podemos dizer que esse modelo litúrgico corresponde ao modelo bíblico? Será que de fato o modelo que praticamos oportuniza a expressão da diversidade que há na igreja? Esse modelo permite a livre expressão e manifestação de dons e mutualidade? Há alimento e crescimento satisfatório para os irmãos, do ponto de vista neotestamentário, num modelo que comporta uma classe clerical e sacerdotal, e no qual ainda subsistem elementos e objetos sagrados?
Observando melhor, veremos que os sistemas religiosos baseiam-se em rituais e responsabilidades. Com a observância de rituais da fé, o fiel procura agradar a Deus e alcançar a bênção. Criaram-se liturgias com ladainhas, procissões, hierarquias, símbolos, ritos e coreografias, e consideram-se mais abençoados aqueles que aderem a esse padrão. Isto é apenas uma constatação. A Reforma de Lutero - Século XVI – foi importante, mas não alterou o interior desse sistema. Parece estar evidente que os protestantes e evangélicos do Século XXI ainda consideram que o melhor cristão é aquele que observa com dedicação os rituais da fé. Ainda é forte no pensamento religioso reformado o sentimento de que a pessoa que agrada a Deus é aquela que não falta aos eventos e procura cumprir as regras. 
Precisamos fazer distinção entre tradição e tradicionalismo. Podemos dizer que tradição é a fé viva daqueles que já morreram, e tradicionalismo é a fé morta daqueles que ainda estão vivos. Jesus quis que seus discípulos soubessem que regras excessivas e tradicionalismo sempre dificultam o fluir do poder e da vida do Pai. Apesar disso, a fé reformada ainda se vê amasiada com tradicionalismos, visíveis na liturgia dos cultos comunitários (há exceções, mas essa talvez seja a regra).
Existe confusão entre seguir uma religião e ser discípulo de Jesus. Reuniões dominicais, estudos temáticos, hinos e orações públicas, embora possam ser agradáveis, comunicam pouco da essência de Deus. Não quero dizer que devemos abandonar a igreja-instituição ou promover a implosão em massa de templos, mas que devemos usar esses elementos apenas como meios facilitadores do caminho ao Pai, como ferramenta para congregar pessoas, e não como um fim em si mesmo. Isto porque o culto e a igreja não são lugares onde se pode ir (pelo menos não deveria ser). Culto é “prestado” e ser igreja é um “estilo de vida”.
Se igreja e culto são lugares onde se pode ir, então se justifica a ilusão de que lá, e somente lá, devemos estar, na hora marcada, para receber de Deus o que ele pretende nos entregar. E também se explica o fato de termos tantos crentes dependentes de um “sacerdote”, e apesar do tempo de conversão ainda serem tão imaturos.
As tradições litúrgicas não são o entrave em si, mas passam a ser quando se tornam o principal meio pelo qual as pessoas buscam a Deus e confundem tudo isso com disciplina essencial nessa busca, e que Deus não vai aceitar o culto se algo sair do script. Só pode haver crescimento genuíno em Deus quando há relacionamento pessoal com o Pai e com as pessoas[1].
A revista Época[2] publicou matéria informando o advento de uma espécie de Nova Reforma protestante. Inspirado no Cristianismo primitivo, um grupo crescente de irmãos têm orado, criticado a visão dominante e, sobretudo, trabalhado para retomar as práticas bíblicas – como acreditam – de culto público e vivência cristã. Seguem as cinco principais características da visão dominante e a proposta com base nas primeiras comunidades cristãs:

Visão dominante
Visão bíblica
Templo
A igreja é a “Casa de Deus”. As denominações investem muito dinheiro na construção de templos confortáveis e em manutenção.
 Preferem reuniões em casas, em pequenos grupos, em cafés, auditórios ou em qualquer lugar de fácil acesso. A “Casa de Deus” é o próprio cristão.
Pastores
São considerados “ungidos pelo Senhor” com acesso preferencial a Deus e às suas revelações. As relações são verticais, com base num sistema hierárquico.
 São líderes com preparo para aconselhamento e ensino, mas as relações são de igual para igual com os leigos. As relações são baseadas em ministérios e a liderança é dissociada do poder de mando.
Abordagem
É a guerra da “verdade” dos cristãos contra a mentira dos não-cristãos. A Bíblia é a arma do convencimento.
São os relacionamentos que conduzem ao interesse pelo Cristianismo. A Bíblia é a ferramenta que norteia essas relações.
Dízimo
O fiel contribui na expectativa de que sua fidelidade será decisiva para que Deus resolva seus problemas pessoais.
A oferta é apresentada como um gesto de gratidão, altruísmo e solidariedade. Algumas igrejas aboliram a entrega do dízimo de sua liturgia.
Sociedade
O “mundo” é mau e a igreja é o único lugar onde os crentes podem se proteger de sua influência.
A igreja é uma espécie de “central de treinamentos” para que o fiel exercite seus dons espirituais na vida cotidiana.
É preciso esforço mental e muita boa vontade para desculparmos o advento de shows gospel, cultos de libertação, de revelação, de profecias, de milagres, de cura e outros mais. Cada um com seu rito ou liturgia próprio. Podemos assentar essas novidades sob o espeque bíblico? Não seria esse fenômeno fruto da opção deliberada de satisfazer as expectativas das pessoas, em frontal prejuízo do que ensina a Palavra?
Tais práticas revelam o imaginário religioso que se firmou com raízes profundas na massa que cultua, cuja releitura mostra-se dificílima, sobretudo porque há interesses envolvidos. Digo, interesse da classe clerical que não permite negociar seu status no sistema; mas também da classe majoritária e submissa dos “leigos” – assim chamados – que luta pela manutenção de pessoas que possam lhes dizer o que fazer, e que busquem a Deus e orem por elas quando necessitarem. Isso lhes traz uma atmosfera de segurança.
A ideia, contudo, não é trabalhar o fim do que ora experimentamos, de forma insensível, abrupta e sem o devido cuidado. O que se propõe é a conclamação de líderes, pastores, mestres e demais obreiros a que preguem a Palavra. Tão simples como ela se mostra. Fazendo assim, é possível que a estrutura litúrgica que conhecemos se mantenha (embora eu duvide), mas ela passará a ser vivenciada em outra perspectiva, porque terá havido a pretendida ressignificação, pela transformação que começará dentro de cada um.
Precisamos de discernimento, não apenas porque o obreiro cristão hoje está cercado de espiritualidades falsas, mas porque muito do que passa por cristianismo evangélico é apenas verniz das coisas espirituais. (Paul Stevens, 1998)[3]

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